Wednesday, December 03, 2008

Assim nasce uma elite


Escavações do metrô de Salvador revelam um cemitério de produtos sofisticados com quase 150 anos

Para a cura de úlceras persistentes, a última palavra é o fabuloso ungüento Holloways. Cura ainda gota e reumatismo. Um sucesso de público, anunciado em mais de cem jornais em vários países. O inglês Thomas Holloways, criador desta incrível fórmula, logo fez fortuna suficiente para concretizar seu verdadeiro sonho: fundar um colégio para senhoritas batizado com seu nome.

No pote de cerâmica branco e azul revela-se o retrato de uma época. Tempo em que o capitalismo ampliava seu impacto no mundo, levando produtos industrializados para cidades coloniais ansiosas por imitar o modo de vida da velha e boa civilização européia. Por exemplo: Salvador.

Louças inglesas de marca, frascos de perfume francês, porcelana chinesa, remédios americanos, bebidas que faziam sucesso entre os ricos, talheres, escovas de dentes, cachimbos e peças utilitárias... Um “cemitério” com mais de 40 mil objetos ou fragmentos veio à tona em uma despretensiosa escavação no Campo da Pólvora, na capital baiana. Despretensiosa porque, embora abrindo caminho para a expansão do metrô, a empreitada não prometia encontrar muito mais do que os alicerces da antiga Casa da Pólvora, depois quartel, que existiu ali até meados do século XIX.

A surpresa foi descobrir que estavam depositados na área os restos de demolições de casas próximas ocorridas no final daquele século. Junto com destroços de construção, lá estava um enorme e variado estoque de objetos pessoais. Na época, habitava o entorno do Campo de Pólvora (hoje uma praça urbanizada) o que hoje chamamos de “classe média alta”. Médicos, religiosos, professores, funcionários públicos. Gente que, sempre que podia, desfrutava dos luxos aristocráticos, como mostra a coleção desencavada.

“A coleção revela o interesse das classes de maior poder aquisitivo em copiar o modo da Corte, do Rio de Janeiro”, sintetiza Ana Maria Cavalheiro de Lacerda, arquiteta da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que participa da pesquisa desde o início, em 2001. A melhoria das condições de vida não se dava só dentro de casa: data da mesma época a expansão de serviços públicos, como abastecimento de água, iluminação e transporte. “É o momento em que se investe em melhorias nas cidades, aumenta a preocupação com higiene e saneamento, o Brasil quer se mostrar ao mundo como progressista”, completa.

A variedade, o tamanho e a boa conservação dos objetos facilitaram sua identificação e a datação. Mas o volume do acervo era tão grande que só agora a catalogação do material está chegando ao fim. Começa então a análise mais detalhada dos materiais. Enquanto isso, os pesquisadores tentam usar as descobertas como trunfo para criar um “Museu dos Trilhos”, associado às novas estações do metrô. Ele contaria a evolução da cidade por meio das mudanças nos transportes. Seja qual for o gancho, Salvador tem nas mãos a chance de “conviver” novamente com sua elite de quase 150 anos atrás.


Revista de História da Biblioteca Nacional

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